O “partido colonial” e as autarquias municipais - Nelson Pestana | ||||||||||||||||
Este é um argumento que, mutatis mutandi, é o mesmo que o do colonial-fascismo, para negar a concretização do nosso nobre sonho de independência. Diziam então que Angola não tinha desenvolvimento suficiente, não tinha quadros para prover as estruturas da administração, desde que os portugueses abandonassem o país. Catequisavam que era preciso esperar para que estas condições se criassem, enquanto se agravava a descriminação e teimavam em não fazer a integração universal dos angolanos na civitas, deixando a sua maior parte no espaço (físico e espiritual) do indigenato. É o mesmo argumento, assente no mesmo paternalismo colonial. A este tipo de argumento, o movimento nacionalista angolano, desde o século XIX, respondeu com a seguinte assertiva: se não o fizeram em mais de 300 anos, perderam a oportunidade de o fazer, agora só resta o caminho da independência. Os filhos de Angola farão o que os senhores não fizeram. John Kennedy, então presidente dos Estados Unidos, propôs ao governo de Salazar um plano de descolonização de Angola, em dez anos. Salazar negou-se a aceitar uma tal proposta pois Angola era a “coroa do Império” e não estava à venda – dizia o inquilino de São Bento. O ditador de Santa Comba Dão achava-se proprietário desta nossa terra generosa. Era teimoso, uma teimosia que o levava a não ver as transformações que se operavam no mundo e, em particular, em África. Para as almas caridosas deixem dizer que a analogia não é exagerada; quantas vezes a arrogância e brutalidade deste regime nos foi imposta? Quantas vezes o ditador local foi apelidado, inclusive por autoridades públicas, de “dono do país”? Querem fazer a implementação das autarquias num horizonte temporal de cerca de 12 anos, isso é uma atitude guiada pelo interesse nacional? São rostos diferentes mas o mesmo argumento, o mesmo paternalismo e o mesmo desprezo pelas populações e ainda a mesma teimosia, com um mesmo propósito; manter inalterada a hegemonia do poder instalado. As autarquias estão na Constituição há 25 anos e agora que se proclama a intenção da sua implementação, ficamos a saber que o anúncio do PR não foi para todos. A intenção do “partido colonial”, aqueles que se opõe a implementação imediata das autarquias, com o argumento da falta de nível de desenvolvimento, é dividir os angolanos em várias categorias: os que vão entrar na civitas, cuja a vida vai passar a ser regulada pela Constituição (a lex civil actual) ascendendo à cidadania e ao autogoverno e os que continuarão no mundo do indigenato que serão submetidos à lei dos povos, aplicada por cônsulos do império de Luanda que vão garantir (é o que dizem) a sua elevação à civilização. Só aí passam (pelo menos, é a promessa) a fazer parte da civitas. Outro argumento do “partido colonial” para justificar a teoria da diferenciação negativa entre municípios é o da desigual capacidade na colecta de impostos. É a repetição do anterior argumento, agora vertido em relação ao regime das finanças locais. Dizem que há muitos municípios que não tem uma colecta suficiente, nem sequer para pagar os salários dos seus funcionários. Desonestamente, dão a impressão de que as autarquias passarão a viver tão-somente dos dinheiros colectados por elas, como se se fosse estabelecer um regime de autarcias. A desigual capacidade de colecta das autarquias municipais, sendo embora uma realidade fáctica inegável, é um falso problema, pois a Constituição estabelece de forma lapidar que o regime das finanças locais deve ser estabelecido em obediência a quatro princípios: (1) o princípio da proporcionalidade dos recursos em relação às atribuições, (artigo 215o, 1, CRA), (2) o princípio da solidariedade nacional e local (artigos 1o e 222o, CRA); (3) o princípio da “justa repartição dos rendimentos e da riqueza nacional” (artigo 101o, CRA), vertido também no princípio da “justa repartição dos recursos públicos pelo Estado e pelas autarquias” (artigo 217, 3) e (4) o princípio da “correcção de desigualdades entre as autarquias” (artigo 217, 3, CRA). A este propósito o OGE faz a fixação das despesas autorizadas, em cada ano fiscal, quer para o Estado e seus dependentes, quer para as autarquias (artigo 104o, 2, CRA). É neste exercício que se deverão tratar de forma desigual situações desiguais, aplicando-se o princípio da equidade, sem que se tenha que negar o princípio da igualdade. Mas, para além da cabimentação diferenciada inscrita no OGE, com vista a aplanar as assimetrias regionais, há ainda a possibilidade da administração central do Estado (Governo) ou local (Governador provincial) investirem nessas regiões directamente ou estabelecendo contratos-programa com as autarquias mais necessitadas, para a recuperação de atrasos, nomeadamente estruturantes, o que é uma obrigação prevista na Constituição e uma forma de realização do princípio de solidariedade nacional. A questão das autarquias não pode então, ser vista como um simples expediente de poder, uma questão táctico-partidária é uma questão nacional com várias vertentes: constitucional, política, económica, social e cultural, entre outras. Os argumentos constitucionais do “partido colonial” resumem-se a simples citação do artigo 242o, da Constituição, de que fazem uma leitura literal, não sistémica para catequizarem que o gradualismo funda-se no princípio da racionalidade, da proporcionalidade e do respeito pela unidade e integridade do Estado”. Repetem pois a velha retórica de que as autarquias poderão constituir uma balcanização do país. Daí que durante muito tempo tenha evocado razões políticas sobre a “necessidade da consolidação das instituições estatais” e da “unidade do território”. Alguém acha que as autarquias podem representar um risco de “desagregação do território”? Pelo contrário, vão impulsionar a unidade e a reconciliação nacionais pela percepção das populações de que estas são também um meio de reparação política. Uma possibilidade de participação política e de criação de novas fileiras de promoção política, de responsabilização dos governantes perante os governados, porque as autarquias terão órgãos de governação autónomos, eleitos pelos próprios munícipes: a Assembleia municipal onde estarão representadas várias forças políticas, com carácter deliberativo e perante a qual o Presidente do “executivo colegial” será responsável politicamente (artigo 220o, CRA). No plano económico, é a oportunidade de se constituir sistemas locais de economia circular e de alimentar uma cadeia produtiva que permita uma melhor reprodução económica e social. As autarquias serão a oportunidade de uma democracia económica, de olear um sistema financeiro local, com efeitos reprodutores evidentes, como já se verificou com a experiência da distribuição dos célebres 5 milhões de dólares pelos municípios (grupo A), em 2007. Esta medida tinha fins eleitoralistas e logo no ano seguinte, depois das eleições de 2008, foi extinta, concentrando-se tudo, outra vez, no PR que inventou o PMIDRCP que veio desarticular o funcionamento de todos os municípios e tornar os seus administradores impotentes. Recorrem também a razões culturalistas para dizer que em África o poder tem que estar concentrado num só homem. Estão fora do tempo e não percebem que estamos no século XXI, na era das tecnologias de informação e comunicação, com uma forte urbanização dos países africanos e uma massa crítica cada vez maior, escorada inclusive nas suas diásporas no mundo, o que quer dizer, abertas a inovação e ao diálogo e a novos valores que estão ligados ao Homem, naquilo que tem de mais íntimo que é o indivíduo com a sua livre subjectividade. Não percebem que o momento africano que vivemos é graças a incursão do continente na modernidade, que tem mais a ver com razões históricas do que culturais. O que interessa é as autarquias são também a oportunidade da afirmação da cultura local e das condições de possibilidade de uma política efectiva do uso das línguas nacionais, da valorização do património histórico-cultural local e do fortalecimento da cultura política de pluralismo que se vai enraizar no tecido nacional. A Constituição é imperativa em relação a criação das autarquias em todos os municípios do país (artigo 218o) e os angolanos merecem-no, desde há muito tempo. *Investigador-coordenador do Centro de Estudos Africanos da Universidade Católica de Angola (CEA-UCAN). | ||||||||||||||||
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