Um elefante na cama de JES: os crimes da ditadura de Agostinho Neto - Carlos Pacheco
- Categoria Opinião
- 27 maio 2014
Lisboa
- De modo nenhum me agrada ser antipático. Mas o que tenho para dizer e
sempre o disse em todos estes anos obriga-me agora a repetir o gesto: o
da necessidade de soltar um grito enérgico de protesto contra a classe
política do partido-Estado em Angola que, em mais de três décadas, se
tem recusado a enfrentar a verdade sobre os fatídicos acontecimentos do
27 de Maio de 1977.
Fonte: Publico
Essa
classe continua a socorrer-se de artifícios astuciosos para obscurecer
os grandes crimes cometidos por Agostinho Neto. Pois, ao ver o país
levantado sobre uma montanha de cadáveres; ao ver os seus altos
responsáveis refugiados no silêncio e o bureau político apenas
preocupado em emitir comunicados ameaçadores através dos quais se
amordaça qualquer intento de debate ou esclarecimento, é caso para dizer
que a insistência no protesto por parte de toda a sociedade está
plenamente justificada.
No
fundo, reconheço estar a fazer o papel de mensageiro. Dou voz a
milhares de cidadãos sem voz, os chamados sobreviventes do 27 de Maio;
mas, acima de tudo, dou voz a dezenas de milhares de desaparecidos
forçados, cujas sombras continuam soterradas nos alçapões do
esquecimento. Como fazia notar alguém que se salvou dos horrores do
campo de concentração de Mauthausen: "Ninguém diz nada. Ninguém se
recorda de nada. Mas eu estive lá e sei o que foi aquilo".
Também
eu vivi sepultado e espezinhado nas piores grutas do despotismo
netista; sei o que foram as prisões e as chacinas orquestradas pelo MPLA
e por Agostinho Neto; vi desfilar diante dos meus olhos os demónios
mais brutais que nenhuma imaginação é capaz de recriar; vi o tamanho da
desumanidade dos então pseudo-socialistas e democratas que haviam
acabado de emancipar Angola do colonialismo. Vi o diabo na pele de
carrascos que se conduziam como celerados e que eram tão ou mais
perversos que os agentes da Gestapo nos campos de morte da Alemanha
nazi. Vi, em resumo, aplicarem-se as piores torturas e vi crianças
flageladas pela humilhação e as suas vidas exterminadas à bala.
Como
mensageiro não estou aqui para prevenir os dirigentes da eventualidade
de qualquer perigo que os cerca. O meu dever é outro. É um dever de
cidadania, de indignação social. Não me interessa discutir a figura de
Nito Alves e muito menos seu hipotético golpe de Estado; tal como não me
interessa analisar se ele se perdeu na revolução por orgulho ou falta
de juízo. O que me interessa desde a primeira hora é a dimensão da
repressão desencadeada pelo regime de Neto, do mesmo modo que os abusos
cometidos pelo Estado contra cidadãos indefesos. Foi algo de
disparatado, de uma sanguinolência infernal, própria de mentes cruéis.
Isto, sim, é que precisa de ser discutido, o papel das Forças Armadas e
dos Serviços de Inteligência, porém os corifeus do partido, como se
sabe, com as suas vozes vociferantes, opõem-se a qualquer agenda de
abertura.
Com
esta política de amnésia os donos do poder político em Angola talvez
não saibam quanto sofrimento estão a causar a inúmeras famílias e aos
descendentes dos desaparecidos; talvez não se dêem conta de como estão a
condenar Angola a um futuro de vileza. Seja como for, há uma coisa de
que podem ter a certeza: "Não há na cabeça dos [descendentes] um só
cabelo – parafraseando uma personagem de Shakespeare na peça Coriolano –
que não se torne um látego para [eles]". Assim, por mais que insistam
em quebrar os espelhos da memória e em infundir medo aos cidadãos, isso
não impedirá que um dia aconteça o que vem acontecendo em todas as
épocas da história e em todas as geografias nacionais: outros espelhos
perdidos acabarão por ressuscitar das sombras do passado. Como diz um
autor cujo nome não me lembro, "a cada novo dia [esses novos espelhos]
trarão mais recordações e gritarão o nome dos desaparecidos".
O
mandarinato em Angola é terrivelmente obstinado, não quer ouvir a
sociedade e nega-se a debater questões-chave desse trágico passado.
Prefere o território do vazio e do segredo. Contudo, para lá desta
suprema fatuidade, essa mesma classe privilegiada adopta gestos de
autocontemplação e adorna-se com o capricho autoritário de querer ser
maior do que o corpo social que governa. Um erro crasso que fere de
morte, ano após ano, a possibilidade de um verdadeiro processo de
democratização nacional.
A
herança despótica de Agostinho Neto com as suas perseguições e crimes
de lesa-humanidade é uma realidade asfixiante que perdura até aos nossos
dias. Prolonga o conflito entre duas concepções de justiça. Uma
dogmática, a do poder, e outra de conciliação. O Presidente José Eduardo
dos Santos, pelos vistos, também permanece dividido entre estes dois
campos opostos, embora sem dúvida mais refém da herança ditatorial e sem
capacidade para remover os seus sulcos e promover a redenção de Angola
pela via do diálogo e da concórdia nacional. Esta situação de rigidez
causa-me calafrios, por ser incompatível com o bem comum. É uma espécie
de elefante com o qual o Presidente se deita e se levanta todos os dias.
Será ele um dia capaz de superar este ambiente de polaridade e impor a
necessária vontade política para se esclarecer o porquê de tanta
repressão e tantos massacres?
Historiador angolano